De Profundis: A Lição que Oscar Wilde Nos Ensinou do Fundo do Abismo

No nosso último encontro, conversamos sobre o homem público, o dândi cintilante que usou a inteligência como arma e o estilo como manifesto. Vimos sua ascensão meteórica e sua queda trágica, culminando na condenação que o despojou de tudo. Mas o que acontece quando as luzes se apagam, a plateia vai embora e um homem fica a sós com suas ruínas? É nesse espaço de silêncio e desolação que nasce a obra mais dolorosa e, talvez, mais importante de Oscar Wilde: De Profundis.

Se a vida de Wilde até o julgamento foi uma performance pública, esta carta, escrita do fundo da cela, é o monólogo da alma. É um texto que não se lê levianamente. Exige maturidade, exige que já tenhamos conhecido alguma forma de perda para compreendermos sua magnitude. Para nós, que já navegamos por décadas de vida, com suas inevitáveis tempestades, De Profundis não é apenas literatura; é um espelho para nossas próprias jornadas de queda e redescoberta.

O Que é, Exatamente, De Profundis?

O título, em latim, significa “Das Profundezas”. É a abertura do Salmo 130, um clamor a Deus vindo do desespero. Não poderia haver nome mais apropriado. A obra é, em sua essência, uma única e monumental carta de 50.000 palavras que Wilde escreveu durante os últimos meses de sua pena na prisão de Reading, entre 1896 e 1897.

O destinatário era seu amante, Lord Alfred “Bosie” Douglas, o pivô de sua ruína. Wilde não tinha permissão para enviar a carta da prisão; ele a escrevia em folhas azuis, uma por dia, que eram recolhidas e guardadas. Ao ser solto, entregou o manuscrito a um amigo fiel, Robert Ross, com a instrução de que fizesse uma cópia para ele e enviasse o original a Bosie. Bosie, mais tarde, negaria tê-la recebido.

O texto que conhecemos hoje só foi publicado integralmente em 1962, muito depois da morte de todos os envolvidos. É um documento cru, um acerto de contas que se desdobra em duas partes distintas: a primeira, um inventário amargo das falhas de seu amante; a segunda, uma profunda meditação sobre o sofrimento, a arte e a espiritualidade.

Primeira Parte: A Anatomia de um Amor Tóxico

A metade inicial de De Profundis é um exercício doloroso de retrospectiva. Wilde disseca, com a precisão de um cirurgião, a relação destrutiva que manteve com Bosie. Ele o acusa de ser superficial, egoísta, vaidoso e, acima de tudo, uma distração fatal para sua vocação artística.

Wilde enumera as extravagâncias financeiras, as interrupções constantes em seu trabalho, as brigas mesquinhas e a exigência de uma vida de prazeres incessantes que o afastaram de sua essência.

“Enquanto você se divertia, a falência, o opróbrio, a ruína e a desgraça me esperavam.”

Para quem lê hoje, essa parte da carta é um estudo de caso sobre relacionamentos tóxicos. É um espelho que reflete padrões que muitos de nós, infelizmente, podemos reconhecer em alguma medida, seja em nossas próprias vidas ou na de amigos. É o retrato de como uma paixão pode se tornar uma força destrutiva, minando nossa estabilidade, nossa paz de espírito e nosso propósito. Wilde nos mostra, com uma honestidade brutal, o perigo de amarmos alguém que ama mais a si mesmo e ao drama do que a nós.

Essa análise não é apenas um desabafo; é um ato de retomada de controle. Ao nomear e descrever a dinâmica que o destruiu, Wilde começa a se libertar de seu poder.

Segunda Parte: A Virada Rumo à Sabedoria

É na segunda metade da carta que a obra transcende o pessoal e se torna universal. Após esgotar sua amargura contra Bosie, Wilde vira o foco para si mesmo. A grande virada acontece quando ele assume sua própria responsabilidade, não pelo crime que não cometeu, mas por ter permitido que sua alma fosse corrompida pela superficialidade.

É aqui que ele introduz o conceito que se tornará o alicerce de sua nova filosofia: a humildade.

Para Wilde, a humildade não é a imagem de um homem ajoelhado e subserviente. É algo muito mais profundo: é a aceitação radical de todas as experiências, boas e más. É entender que nada do que nos acontece é em vão. Ele escreve:

“Devo fazer de tudo uma ajuda para mim. Devo aceitar tudo. Não devo ter vergonha nem medo de nada.”

Essa é a lição central que o sofrimento lhe ensinou. Antes, ele buscava apenas o prazer. Na prisão, despojado de tudo, ele descobre que o sofrimento é uma forma de revelação, talvez a mais intensa de todas. Ele decide abraçar sua dor, sua vergonha e sua humilhação como partes integrantes de sua jornada, transformando-as em matéria-prima para o conhecimento.

Quem de nós, ao enfrentar uma crise – seja um término, uma doença, a perda de um emprego –, não se sentiu no fundo do poço? A mensagem de Wilde das profundezas é que esse é o solo mais fértil. É ali, quando não temos mais nada a perder, que podemos finalmente encontrar nossa verdadeira essência.

Cristo, o Individualista Supremo

Nessa busca por um novo sentido, Wilde faz algo extraordinário: ele se volta para a figura de Cristo. Mas não o Cristo das igrejas e dos dogmas. Wilde reinventa Jesus como o artista romântico supremo, o individualista perfeito.

Para ele, Cristo não era um pregador de regras, mas um homem que viveu sua verdade de forma tão intensa que transformou a si mesmo em uma obra de arte. Ele o via como alguém que amava os marginalizados – os pecadores, os leprosos, os publicanos – não para “salvá-los” de forma condescendente, mas porque via neles uma humanidade mais autêntica.

Essa visão de Cristo como um poeta e um individualista que sentia tudo com uma intensidade avassaladora era a única forma de espiritualidade que o artista caído poderia aceitar. Era um reflexo de sua própria alma.

Conclusão: O Que a Voz do Abismo Nos Ensina?

De Profundis não é um livro de autoajuda, mas suas lições são um bálsamo para a alma madura. Wilde nos oferece um mapa para navegar nossas próprias escuridões.

  1. Confrontar é o primeiro passo: Não podemos nos curar do que nos recusamos a encarar. A análise brutal que ele faz de sua relação com Bosie foi um passo necessário para sua libertação.
  2. A responsabilidade é poder: Ao deixar de culpar o outro e olhar para suas próprias escolhas, Wilde retoma as rédeas de sua narrativa. Ele para de ser uma vítima e se torna o autor de seu próprio aprendizado.
  3. O sofrimento pode ser um mestre: A dor, quando aceita e examinada, pode nos ensinar o que o prazer jamais conseguiria. Ela nos força à introspecção e nos conecta com uma humanidade mais profunda.
  4. A beleza pode ser encontrada em todos os lugares: Mesmo na feiura de uma cela de prisão, Wilde encontra um caminho para a beleza através da autoanálise e da reinterpretação do mundo. Ele nos ensina que o espírito artístico é, acima de tudo, um espírito de resiliência.

Ler De Profundis é uma experiência íntima e, por vezes, desconfortável. É testemunhar um homem brilhante se reconstruir a partir dos escombros. Para nós, ele deixa um legado poderoso: não importa quão fundo seja o abismo, sempre há uma voz interior esperando para ser ouvida, e é dessa escuta que pode nascer a mais profunda sabedoria.

Qual passagem da sua vida se assemelha a um “De Profundis”? Como você encontrou um novo caminho após uma grande perda? A conversa, como sempre, continua nos comentários.


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Alexandre Sbalqueiro
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