Já falamos aqui sobre o homem Oscar Wilde e mergulhamos nas profundezas de sua dor em De Profundis. Agora, vamos voltar no tempo, para o auge de seu poder criativo, e analisar a obra que o tornou uma lenda. O Retrato de Dorian Gray é muito mais que uma história de terror gótico sobre um pacto diabólico. Para nós, homens que já vivemos o suficiente para entender as complexas relações entre beleza, tempo e identidade, este livro é um espelho. Um espelho que reflete as ansiedades, os desejos e as dualidades que moldam a alma masculina, especialmente a alma masculina gay.
Muitos leem este romance na juventude e se encantam com o suspense e a prosa cintilante. Relê-lo com a bagagem da maturidade, no entanto, é uma experiência completamente diferente. É desvendar as camadas de uma parábola profunda sobre os perigos do culto à juventude e sobre a inevitável necessidade de encarar o homem que realmente somos, por trás da máscara que apresentamos ao mundo.
A Trama que Seduz, a Verdade que Assombra
A premissa do romance é universalmente conhecida: Dorian Gray, um jovem de uma beleza estonteante, torna-se a musa do pintor Basil Hallward. Apavorado com a ideia de que sua beleza irá um dia desvanecer, Dorian expressa em voz alta o desejo de que ele pudesse permanecer sempre jovem, enquanto o seu retrato, pintado por Basil, envelhecesse em seu lugar. O desejo, para seu horror e deleite, é atendido.
Enquanto Dorian se lança em uma vida de hedonismo e crueldade sob a influência do cínico Lord Henry Wotton, seu rosto permanece imaculado, um querubim de mármore. O retrato, no entanto, trancado em um sótão escuro, começa a se transformar, registrando cada pecado, cada ato de maldade, em traços de escárnio e degradação. O horror do livro não vem de um monstro externo, mas da monstruosidade que floresce por dentro.
O Triângulo Masculino: As Forças que Nos Moldam
A genialidade de Wilde está em personificar as forças que batalham dentro de nós em três personagens inesquecíveis. Eles não são apenas homens; são arquétipos da nossa própria psique.
- Basil Hallward: O Amor que Cria e Idealiza. Basil é a alma, a consciência, o coração do romance. Seu amor por Dorian é puro, artístico e profundamente devocional. É a representação mais clara do amor homoerótico que Wilde poderia publicar na época. Basil não ama apenas a aparência de Dorian; ele ama o ideal que projeta sobre ele. Ele enxerga a bondade e a inocência, e é por isso que o retrato que ele pinta é, inicialmente, uma obra-prima da pureza. Muitos de nós já conhecemos um “Basil” em nossas vidas, ou já fomos um: aquele que ama com uma devoção que beira o sagrado.
- Lord Henry “Harry” Wotton: A Influência que Seduz e Corrompe. Se Basil é a alma, Lord Henry é o intelecto cínico e a voz do hedonismo. Com seus aforismos brilhantes e sua filosofia de que “a única maneira de se livrar de uma tentação é ceder a ela”, ele envenena a mente de Dorian. Lord Henry prega a busca incessante por novas sensações e a primazia da beleza e da juventude sobre todas as coisas. Ele é a voz sedutora que todos nós já ouvimos, aquela que nos incita a colocar o prazer imediato acima das consequências, a teoria elegante acima da empatia humana.
- Dorian Gray: O Campo de Batalha. Dorian, em si, começa como uma tela em branco. Ele é o corpo, a beleza passiva que se torna o palco onde a batalha entre a alma (Basil) e o intelecto amoral (Lord Henry) é travada. Sua tragédia é escolher ativamente o caminho de Lord Henry, transformando-se de um objeto de desejo em um agente de sua própria destruição e da dos outros.
O Sótão: A Metáfora Perfeita da Vida Dupla
Aqui reside o ponto que mais dialoga com a experiência gay de gerações. O retrato, escondido sob um pano no quarto mais isolado da casa, é a metáfora mais poderosa já escrita sobre o armário e a vida dupla.
Para qualquer homem que já sentiu a necessidade de esconder uma parte fundamental de si mesmo – seus desejos, seus medos, seus amores –, o sótão de Dorian Gray é um lugar terrivelmente familiar.
- A Fachada Impecável: Em público, Dorian é charmoso, belo, perfeito. Ele mantém a aparência de normalidade e respeitabilidade que a sociedade exige.
- O Monstro Escondido: Em segredo, o verdadeiro “eu” – a soma de suas ações e de sua verdadeira natureza – apodrece e se desfigura, trancado a sete chaves.
- O Medo da Exposição: O pavor constante de Dorian é que alguém descubra seu segredo, que o véu seja levantado e que o mundo veja o monstro que ele realmente é. Esse medo de ser “descoberto” é a essência da angústia do armário.
A imagem de Dorian subindo as escadas, com uma vela na mão, para espiar a face medonha de sua alma no retrato, é o retrato psicológico de quem vive uma vida de segredos, obrigado a confrontar periodicamente a verdade que tanto se esforça para negar ao mundo.
A Crítica Feroz ao Culto à Juventude
Se há uma lição em Dorian Gray que ressoa com uma força particular para nós, homens da comunidade Urso, é sua crítica contundente ao culto à juventude. Nossa comunidade, muitas vezes, se forma como uma resposta ou um refúgio a uma cultura gay mais ampla que pode supervalorizar a juventude e um tipo físico específico. Nós aprendemos a encontrar beleza na maturidade, valor na experiência e atração na autenticidade que vem com o tempo.
Dorian Gray é a cautionary tale definitiva sobre essa obsessão. A busca de Dorian pela eterna juventude não lhe traz felicidade. Pelo contrário, ela o impede de amadurecer. Ele não desenvolve empatia, sabedoria ou profundidade, pois nunca enfrenta as consequências naturais da vida, que ficam gravadas em nosso rosto e em nosso corpo. Ele se torna um espectador de sua própria vida, preso em um ciclo de prazeres vazios, incapaz de se conectar verdadeiramente com alguém.
Wilde nos mostra que uma vida sem as marcas do tempo é uma vida sem significado. As rugas, os cabelos grisalhos, as cicatrizes – são o mapa de nossas jornadas, a prova de que vivemos, amamos, sofremos e sobrevivemos. Tentar apagar isso é apagar a própria história.
Conclusão: Encarando Nosso Próprio Retrato
Ao final, em um ato desesperado, Dorian tenta destruir o retrato, a prova de seus crimes. Ao esfaqueá-lo, ele destrói a si mesmo. Os criados encontram no sótão o retrato de seu mestre, belo e jovem como no dia em que foi pintado, e no chão, um corpo murcho, enrugado e repugnante, reconhecível apenas pelos anéis em seus dedos.
A moral é clara e implacável: não podemos nos dissociar de quem somos. Nossa alma e nosso corpo estão intrinsecamente ligados. Tentar viver uma vida negando as consequências de nossas ações e a verdade de nosso ser interior é um caminho para a autodestruição.
O Retrato de Dorian Gray nos convida a uma reflexão profunda. Ele nos pergunta: Qual é o “retrato” que escondemos? Que parte de nós tememos que o mundo veja? A beleza que realmente importa é a da juventude eterna ou a da integridade de uma vida bem vivida, com todas as suas imperfeições?
A verdadeira beleza, como a comunidade Urso bem sabe, não está na ausência de marcas, mas na riqueza da história que cada uma delas conta.
E você? Ao olhar para sua jornada, qual aspecto do seu próprio “retrato” você aprendeu a aceitar e até a amar com o tempo? A conversa, como sempre, é um espaço para compartilharmos nossa sabedoria.
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